José Tomás Oliveira

Fevereiro2023






GEOLOGIA DE CAMPO

SÓCIO APG Nº O22




É natural de Beja e estava destinado a ser médico, mas "geoencarrilou" na viagem de comboio para Lisboa. Exímio geodivulgador, hoje é um nome incontornável da Geologia portuguesa e moçambicana e detém um dos pares de pés com mais quilómetros calcorreados a fazer cartografia geológica.

"Porque nós, como geólogos, nunca devemos esquecer que a Geologia é uma ciência histórica e que nós temos uma história para contar. Todos os geólogos devem ter uma história para contar sobre aquilo em que trabalham (...)"

Foi nesse lugar especial da Geologia portuguesa, o Museu Geológico, nos mesmos corredores que espiaram os nossos pioneiros há mais de século e meio, que tivemos o previlégio desta conversa com o Tomás. José Tomás Oliveira, dito assim já nos soa a um só substantivo cunhado na Geologia nacional. Era para ter sido médico, podia ter sido músico, mas, sorte a nossa, acabou geólogo. Viu, calcorreou, martelou e duvidou em terrenos antigos cá dentro e lá fora. Saiu para a África que lhe é tão especial e regressou com uma promessa de trabalho que se perdeu na confusão da época mais conturbada na história recente do país. Acabou captado para ingressar nas fileiras do Serviços Geológicos, porque afinal na vida, como na Geologia, é muitas vezes o acaso que gera as ocorrências notáveis: há um antes e um depois do Tomás na cartografia geológica nacional. Venham conhecê-lo, porque o homem não desilude o cientista. Ele diz que não há nenhum geólogo que esteja satisfeito com o seu próprio trabalho. Mas Tomás, nós estamos com o seu!


Entrevista 

Museu Geológico, Lisboa, julho de 2022


1. Nome, data e local de nascimento

José Tomás Oliveira. 20 de fevereiro de 1942. Salvada, freguesia de Beja. Sou, portanto, alentejano de gema, com muito orgulho.

2. De forma simples, para que qualquer pessoa possa entender, o que é que fez na sua vida profissionalmente?

Como sabem, eu sou fundamentalmente um geólogo de campo. E, como tal, tenho feito fundamentalmente cartografia geológica. E em que é que consiste a cartografia geológica? Consiste em identificar, numa dada região, os vários tipos de rochas que existem, lançar a representação dessas rochas nos mapas da região e, acima de tudo, e aquilo que mais me interessa, ver as relações que os vários tipos de rochas têm entre si, para fazermos aquilo a que chamamos a história geológica dessa região. Portanto, não basta identificar os tipos de rochas, é preciso estabelecer uma hierarquia da deposição, intrusão ou aquilo que for, dessas rochas. Esse é o final da história. Porque nós, como geólogos, nunca devemos esquecer que a Geologia é uma ciência histórica e que nós temos uma história para contar. Todos os geólogos devem ter uma história para contar sobre aquilo em que trabalham, quer seja no campo, quer seja no laboratório.

4. Em que ano e onde é que ingressou no curso de Geologia?

Eu entrei no curso de Geologia em 1962, aqui na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

5. Como surgiu essa decisão?

Essa é uma história muito interessante. Eu, enquanto aluno do liceu de Beja, fiz o 7º ano [equivalente ao término do ensino secundário atual] e estava destinado a ser médico, a ir para medicina. Até me lembro, no baile dos finalistas, ter andado lá com as fitinhas do curso de medicina. E então, acontece que na vinda para Lisboa, de comboio, junta-se um grupo de gente, entre os quais uma pessoa que andava em medicina e começou a contar coisas do curso. E eu disse "Eh, pá! Isso é muito, porque são seis anos, mais quatro anos na especialidade. Nem pensar. Eu quero é ir trabalhar". (risos) Quando cheguei a Lisboa decidi ir para ciências geológicas. 

6. Mas pensava que medicina era a sua vocação ou foi a família?

Não sei se tinha vocação. Todos nós temos um pouco de médicos, não é? Mas não sei se seria uma grande vocação. A minha família deu-me total liberdade para eu escolher aquilo que queria e isso era particularmente importante. Como médico não, mas a vocação que nunca realizei, e que, na realidade, é um grande prazer para mim, é a música. Penso que tenho qualidades para ter sido um músico, mas não fui. Agora sou geólogo, mas uma das componentes dos geólogos é que gostam de música e eu ando sempre com a minha violinha atrás. Tenho muito bom ouvido musical. Aprecio grandemente a música. Toco viola, mas não tenho formação musical, é tudo de ouvido e as posições (mimetizando com as mãos) são aquelas que eu vou tirando, vou inventando posições, porque faço aquilo com tal gosto que vou vendo se os sons saem bem. E dá para umas modinhas. Toco muitas coisas do Zeca Afonso e vou-me entretendo.

7. Portanto, era o professor que animava as noites académicas, é isso?

Isso, sim, sim. (risos) Não sei se vocês sabem que no ano de 1962 houve uma verdadeira revolução [Crise Académica de 1962]. Os movimentos estudantis foram poderosos e eu estive envolvido nisso. Fui dirigente associativo da Faculdade de Ciências.

8. Quanto tempo?

Fui um ano, porque, entretanto, a PIDE resolveu fechar a associação académica. Mas, de qualquer maneira, eu fui julgado em tribunal por pertencer à associação.

9. E teve consequências?

Não, não tive consequências. Podia ter sido pior, porque muitos dos meus colegas tiveram de fugir para o estrangeiro. Não foi o meu caso. Eu, não estando inscrito em nenhum partido, o problema não era grave. Eu era voluntário. Agora os que estavam ligados a partidos, especialmente ao Partido Comunista, esses passaram um mau bocado.

10. Não foi julgado?

Fui julgado, mas foi algo como uma repreensão por escrito.

11. E ainda tem esse documento?

Não, não tenho esse processo, mas eu tenho umas coisinhas escritas e acho que já contei por aí. Acontece que, quando eu entrei em contacto com o movimento académico de 1962, um dos grandes ativistas era o António Ribeiro. E aí é que eu me tornei amigo do António Ribeiro, porque ele já estava a fazer o doutoramento, estava em França, e vinha cá e fazia intervenções dentro do estilo que ele tem, energético e nervoso. (gesticulando para mimetizar o António) Mas, e ao contrário do que muita gente pensa, ele é um tipo puro, ele não é maldoso e é amicíssimo de ensinar aquilo que sabe. Eu devo muito daquilo que sei no campo ao António Ribeiro. Esta é a realidade. No meu tempo, até 1965, não se ensinava Geologia estrutural, não sabíamos nada sobre isso. O que se dava era a Geologia clássica e as visitas de campo que fazíamos era aqui à volta da cidade de Lisboa, era só o Mesozoico e Cenozoico e nada mais. O Paleozoico, raramente o visitámos, só me lembro de uma vez termos ido vê-lo, e é onde estão os grandes problemas estruturais. E o António Ribeiro vinha lá de França, chegava ali à associação, juntava ali a malta toda e dava explicações de Geologia estrutural. Como ele tem um prazer enorme em ensinar, juntava aqueles que estavam por ali e, a páginas tantas, à chegada dele, comunicávamos logo "Está aí o António Ribeiro!". Umas mesas compridas (gesticulando a disposição) e ele punha-se a falar sobre coisas que nós nunca tínhamos ouvido falar: estiramentos, deformações... E nós "Eh pá, estamos mesmo atrasadíssimos, que é que nós estamos aqui a fazer?!".

12. Sentiu que ele era uma lufada de ar fresco?

Absolutamente. Aliás, o António Ribeiro foi uma lufada de ar fresco na Faculdade de Ciências, porque praticamente todos os estruturalistas que há neste país foram formandos dele. Há muitos que não gostam dele, mas isso já é outra questão. Quando eu comecei a trabalhar na Faixa Piritosa Ibérica, principalmente na folha de Mértola [Folha 46-D; 1:50 000], trabalhou comigo o José Brandão Silva [FCUL], foi onde ele fez a tese de doutoramento. O Zé Brandão fez a Geologia do vale do Guadiana, com um pormenor extraordinário, à escala 1:5 000, e eu fiz o resto, também com grande pormenor. E foi aí que, com o António Ribeiro, comecei a ver a complexidade da Faixa Piritosa, porque comecei a ter alguma visão sobre os problemas estruturais, que não tinha, nesse tempo não havia. E é por isso que eu considero o António Ribeiro uma pessoa particularmente importante, não só como amigo. É que ele ensinou-me a mim e ensinou a maior parte dos estruturalistas, o Alex [Alexandre Araújo, UÉ], o Rui Dias [UÉ, CCVEstremoz], muita gente. 

13. E hoje em dia eles passam esse conhecimento para os seus alunos.

Exatamente, mas tudo partiu do António Ribeiro, isso é indiscutível.

14. Foi o Big Bang...

Isso, não é por acaso que ele é Professor Emérito.

"Eu tenho uma relação com África muito especial. Mas eu penso que seja assim com todos os portugueses: quando se lá chega, a gente fica logo..."

15. No âmbito da sua carreira, já passou por que países?

Já passei por muitos países. Passei por Angola, onde trabalhei numa empresa privada de pesquisa de ouro e depois passei para a universidade, onde fui professor. Depois passei por Moçambique, onde trabalhei no gabinete do plano de Zambeze, que esteve responsável pela construção da barragem de Cahora Bassa. Havia um plano de investigação para o vale do Zambeze, antes da barragem encher e eu trabalhei e fiz uma cartografia geológica numa situação extremamente difícil, porque o vale do Zambeze é das zonas mais quentes do globo. Apanhei temperaturas de 50°! Depois, ainda em Moçambique, já numa fase seguinte, pós-independência, iniciei um conjunto de colaborações com o país, a partir do ano de 1986. Foram 25 anos de colaboração com a Direção Nacional de Geologia de Moçambique. Consegui envolver o LNEG [Laboratório Nacional de Energia e Geologia], onde eu estava, e muitos dos meus colegas do LNEG em programas de cartografia geológica. Publicámos muitas cartas. As cartas foram feitas em locais indicados pela Direção Nacional de Geologia, de acordo com os seus interesses e atendendo às circunstâncias que existiam, porque havia a guerra, uma situação muito complicada. Fizemos fundamentalmente a cartografia das zonas costeiras. Fizemos a cartografia da cidade de Maputo, que é das poucas cidades de África que tem uma carta geológica à escala 1:50 000, fizemos depois uma outra carta 1:50 000 a sul, muito importante porque estava planeada uma ponte para Catembe e era importante ter conhecimento da Geologia. Também editámos a carta dos recursos minerais não metálicos de Moçambique, fizemos uma versão da carta tectónica de Moçambique, etc. São 25 anos de colaboração que resultaram depois na publicação de um livro, comemorativo desses anos, cuja sessão de lançamento decorreu no LNEG. Este livro, para meu espanto, está a ser muitíssimo utilizado, principalmente nas universidades moçambicanas, porque contém um resumo muito simples da Geologia de Moçambique. Eu tenho uma relação com África muito especial. Mas eu penso que seja assim com todos os portugueses: quando se lá chega, a gente fica logo... (brilho nos olhos) Mas eu andei por muito lado. Fiz também um estágio na Universidade de Liverpool, durante um ano. Eu tenho especial admiração pelo Nery Delgado, porque ele foi, de facto, uma pessoa de uma importância extraordinária. E, principalmente, a componente das pistas (icnofósseis) intrigava-me, porque gostava de saber qual era o significado ambiental dessas pistas. E então fui trabalhar com um especialista em pistas orgânicas em Liverpool durante um ano.

16. Lembra-se do nome dele?

O Peter Crimes, que tem muitas coisas publicadas sobre pistas do Silúrico, no País de Gales.

17. Quando é que foi fazer esse estágio?

Eu entrei aqui para os Serviços Geológicos em 1975 e isto foi em 1977, foi das primeiras coisas que fiz. E foi importante a questão das pistas, porque ocorrem na Faixa Piritosa, que depois se revelou a minha grande paixão. Mais do que as pistas, era importante construir o conhecimento geológico da Faixa Piritosa e passei muitos anos, como vocês sabem, lá. Portanto, estive em Angola e Moçambique, também em Espanha, tive vários trabalhos de colaboração com os espanhóis, e estive na América Latina, mas em representação do LNEG, numa organização que se chama Associação dos Serviços Geológicos Ibero-americanos...

18. Que até tinha uns congressos...

Exatamente. E eu estive sempre ligado a isso até me reformar. Em termos gerais, estes foram os sítios por onde eu passei.

19. Como é que se deu a sua entrada no LNEG?

Eu vim de Angola, da Universidade de Luanda, em 1974. Voltei para Portugal não por causa do 25 de abril, mas porque tinha sido convidado para fazer parte do quadro de professores da Universidade de Évora que se estava a formar. Portanto, eu já tinha até desistido da Universidade de Luanda para vir para Portugal. Dá-se o 25 de abril, mas eu já tinha tudo encaminhado para vir para cá. Quando cheguei cá, todo o processo que já estava organizado, desapareceu.

"O então Diretor-Geral de Geologia e Minas, um senhor chamado Soares Carneiro, considerava o António Ribeiro como o Pelé da Geologia. Porquê? Porque, de facto, dentro do nosso meio ele fazia um brilharete. " 

20. Devido à confusão?

Não, foram outros interesses que surgiram, porque havia muita gente a vir de África e houve muita gente que mexeu cordelinhos e influências. Como eu não tinha influência nenhuma, o meu processo foi posto de lado. E quando eu chego cá nem sabiam do meu processo, nem coisa nenhuma. Sabe quem me valeu? O António Ribeiro. Ele era o geólogo que estava na altura na Direção-Geral de Geologia e Minas, já nos conhecíamos e eu fui ter com o António e disse-lhe "Estou nesta situação, vim de Angola pensando que ia ser professor na Universidade de Évora e agora estou desempregado". (risos) E ele disse "Oh pá, está bem, mas eu vou tratar disso". O então Diretor-Geral de Geologia e Minas, um senhor chamado Soares Carneiro, considerava o António Ribeiro como o Pelé da Geologia. (risos) Porquê? Porque, de facto, dentro do nosso meio ele fazia um brilharete. E o António foi falar com ele, abriu o caminho e eu entrei para os Serviços Geológicos. 

21. O que disseram os seus pais, quando sai de casa para ser médico e decide ir estudar Geologia?

Não disseram nada, porque eu tinha total liberdade para escolher.

22. Mas sabiam que curso ia tirar?

Não sabiam bem, porque eu sou de uma aldeia e as pessoas nas aldeias sabem lá o que é esta coisa da Geologia ou das geociências... não sabem! O que era importante, de facto muito importante, (ar sério) era ter um curso universitário. Porque, nessa altura, ter um curso universitário era garantia absoluta que se tinha trabalho, coisa que não acontece agora. Portanto, a minha família não se importou muito, "Desde que tu vás para a universidade e tires um curso". Isso era o normal, poder ir para a universidade tirar um curso e, portanto, ter um futuro garantido, fosse em que área fosse, ninguém interferia, daí eu ter mudado [a intenção de ir para medicina]. 

"Ele é que nos ensinava a mexer nas bússolas, a ver o que era a xistosidade. O senhor Júlio Barroso, que era um coletor (...)"

"A cartografia geológica é a essência da Geologia"

26. Por que é que se decidiu por Geologia nesse momento? Que bichinho é que já lá estava?

Vou introduzir um pormenor. Nessa conversa que tivemos no comboio [viagem para Lisboa], essa pessoa que andava em medicina começou a dizer que aquilo era um curso muito longo... e eu não tinha condições financeiras para estar 10 anos a estudar. Não tinha. Portanto, perante o cenário que ele me fez, eu disse "Eh pá!, eu não tenho condições para isso". Conversa puxa conversa e ele disse "Há um curso aí, novo, que garante emprego e tal, que se chama curso de Geociências". Metem-se mais conversas, mais uma ou outra informação, de que era um curso relativamente curto, de quatro anos. Não era como agora, eram quatro anos com cadeiras anuais. Nós tivemos 16 cadeiras, penso que só uma, cristalografia, é que era semestral, o resto era tudo anual. Eram cadeirões monumentais!

27. Mas tinha um ano de estágio, quando terminasse o curso?

Eu fiz um estágio, também muito interessante, que já vou contar. Fiz um estágio com um senhor chamado [António] Galopim de Carvalho [FCUL], de quem eu sou bastante amigo.

28. E foi em quê, em sedimentologia?

Não, não. A área foi escolhida por indicação, na altura, de uma instituição, talvez o governo civil de Évora, que se disponibilizou para dar um estágio a estudantes e escolheu dar-se a conhecer a Geologia. Daí, entraram em contacto com a Faculdade de Ciências, que escolheu os alunos. Éramos quatro. Não sei se vocês conhecem a zona de Évora, há uma coisa que se chama a antiga Mitra, que é onde está agora uma delegação da universidade, ligada à agronomia, acho eu. Essa era a Escola de Regentes Agrícolas onde nós estivemos instalados. Mandaram-nos fazer a cartografia à volta dessa escola e o que é que era? Eram xistos muito deformados e eram granitoides, coisa para a qual não tínhamos nenhuma preparação. (risos) Então, o que é que nos safou? Nós não sabíamos identificar o que era a xistosidade e andávamos a trabalhar em rochas muito deformadas, às vezes era complicado e nós sem termos experiência. E quem é que nos ajuda? (ar de suspense) Um coletor dos serviços geológicos, o senhor Júlio Barroso, que trabalhou com o António Ribeiro em Trás-os-Montes durante muito tempo e mais tarde comigo. Ele é que nos ensinava a mexer nas bússolas, a ver o que era a xistosidade. O senhor Júlio Barroso, que era um coletor, de quem eu hoje sou intimamente amigo. E, portanto, a coisa foi assim, nós apanhávamos muita rocha. Lembro-me que havia um contacto de granitos com xistos e umas corneanas e lá andávamos os quatro. E o estágio durou um mês ou um mês e meio, penso eu, íamos colocando as amostras lá na Mitra, num salão, com a localização, o mapa e tal. No final, chega lá o Professor Carlos Teixeira [FCUL], com um outro professor do Porto, o Professor Ávila Martins, e pediram "Então, mostrem lá o que é que apanharam", para identificar as rochas. Cada um foi apresentando a rocha que tinha visto, onde é que tinha estado, o que se pensava, mas tudo muito limitado. E foi depois a cereja em cima do bolo, com se costuma dizer: imediatamente, fui convidado para ir trabalhar para uma empresa canadiana.

29. Logo depois disso?

Logo depois da conclusão do estágio, com o Ávila Martins, que estava envolvido, fui trabalhar para Vila Viçosa em pesquisa de ouro, cobre, chumbo e zinco.

30. Como é que surgiu o convite? Lembra-se do nome da empresa?

O Ávila Martins era representante dessa empresa, chamava-se Mining Exploration International, uma multinacional. Era ele quem tratava dos negócios, escolhia os geólogos para trabalhar, etc, e foi assim. Foram lá e se calhar já levavam os nossos nomes na cabeça.

31. Imagino... se eu tivesse estudantes numa área, que nem eu estou a dominar muito bem, e eles conseguissem se desenrascar, mesmo que com a ajuda de um coletor, claro que eu faria referência a esses alunos. Nesse período mostraram resiliência.

Mostrámos, acima de tudo, uma capacidade para estar no campo. Uma coisa que para mim é fácil, porque para todas as crianças que nascem nas aldeias, estar no campo é a normalidade. Era todos os dias, desde jogar à bola, ir aos pássaros, etc. O estar no campo é para mim um prazer enorme desde criança. E, se calhar, os professores já viam mais ou menos quais eram aqueles que tinham mais apetência para serem geólogos de campo, e os que tinham mais apetência para serem paleontólogos ou geoquímicos e trabalhar num laboratório.

"Há uma característica essencial para o geólogo de campo, que é a capacidade de resistência e, não só, a capacidade de estar sozinho"

32. O seu olho cai sempre mais para a rocha ou também gosta de observar o chamado mundo natural? Sente-se às vezes como um naturalista, ou não, é mesmo geólogo?

As duas componentes são fundamentais, mas o estudo das rochas é a nossa profissão. Mas depois estamos num ambiente que é chamativo para muitas outras coisas.

33. Muitas vezes no Alentejo as pessoas sabem o nome das ervas, árvores e passarinhos...

É, eu identifico os passarinhos à distância. Portanto, estou perfeitamente à vontade para andar no campo, sem problemas nenhuns. Há uma característica essencial para o geólogo de campo, que é a capacidade de resistência e, não só, a capacidade de estar sozinho. Sozinho. Nós andamos no campo com os mapas na mão, com os problemas a revoltarem-se na nossa cabeça, constantemente a trabalhar, "Agora vou aqui, agora vou ali, ver se este é a continuação daquele..." (gesticulando) E não só, para andar sozinho é preciso ter uma capacidade muito grande de sofrimento, inclusivamente. Quando eu tinha de subir à serra de Alcaria Ruiva [Mértola], sei bem o que é que era chegar lá acima! Mas eu tinha que lá ir para ver o que é que estava lá em cima. Portanto, isto implica uma predisposição que nem toda a gente tem, para a Geologia. Provavelmente, é por isso que o trabalho de campo, embora sendo essencial, não é tão considerado como devia ser. A cartografia geológica é a essência da Geologia.

34. Mas continua a haver jovens com esse gosto pela cartografia, isso não os assusta. Até porque hoje em dia é menos duro.

É por isso que eu estava a dizer que, de facto, para se ser geólogo de campo, tem de se ser uma pessoa que tenha capacidade para enfrentar todas essas dificuldades. A cartografia é um exercício fantástico, de uma intelectualidade que a maior parte das pessoas nem faz ideia do que é. Porque nós estamos sistematicamente a colocar hipóteses, "Vou ali. Será que isto está por cima? Tem critério? Está por baixo. Se não tem, como é que é?". Sistematicamente, na nossa cabeça, é um exercício permanente. Intelectualmente é de uma profundidade extraordinária.

35. Estamos sempre a mudar de ideias. Dizemos "É assim" e andamos mais um bocadinho, vemos outra coisa, "Afinal estava errada, não era nada assim. É assim!" Às vezes não é fácil, porque as pessoas gostam muito de trabalhar com certezas e ali nunca há certezas...

Não, em Geologia não há certezas.

36. Certo, mas há quem goste de trabalhar com mais certeza. Quem trabalha no laboratório está habituado a trabalhar com menos incerteza.

O trabalho de laboratório é absolutamente essencial. Se o meu trabalho de campo não for depois complementado, eu não sei qual é a geoquímica das rochas e, portanto, fica incompleto. Se não for complementado com os dados do laboratório, fica incompleto. Fica uma proto-cartografia. Como vocês sabem, a Zélia Pereira fez tese de doutoramento comigo e a informação que ela dá, no laboratório, é absolutamente essencial, até para mim. Ela "põe" idades nas rochas, o que me ajuda a fazer as interpretações estruturais e outras mais. O que eu quero dizer é que o trabalho de campo requer uma certa predisposição e é um exercício de facto intelectual. Porque vou ver ali se isto é a continuação ou como está, "Ah, não é!" Então não é isto, tenho que ter outra hipótese. Vou pensar noutra hipótese, olho, no campo, vou lá ver um afloramento, ainda não é aquele. Não é este, é outra coisa, vou pôr de lado. Aponto no campo. E é sistematicamente isto.

"Não há nenhum geólogo, diria, não há nenhum cientista, que esteja satisfeito com o seu próprio trabalho"

37. Eu quando leio os meus livros de campo, é isso. Estou sempre a mudar de ideias! No final da campanha vou ler as primeiras páginas e dá-me vontade de rir e dizer "coitadinha".

Mas isso é ciência. Repare uma coisa, nós chegamos a uma certa altura com dúvidas e temos de tomar decisões. Não há nenhum geólogo, diria, não há nenhum cientista, que esteja satisfeito com o seu próprio trabalho. Porquê? Porque há sempre dúvidas que ele não conseguiu resolver, teve de tomar uma decisão, "É esta aqui a que eu vou escrever", mas há dúvidas... eu sei do que falo, mesmo em relação à Faixa Piritosa. Portanto, a ciência nunca está feita e eu direi que só quem não anda neste mundo é que diz "Eu fiz uma coisa extraordinária". Nunca está feito. Há sempre coisas novas. E ainda bem!

38. Trabalhar em "cristas" é claramente diferente do que trabalhar no Alentejo, em que há um afloramento aqui e só um quilómetro, dois ou três é que se vê o próximo. Isso trouxe-lhe frustração? Como é que lidou com isso?

Frustração não direi, porque essa é a realidade e nós temos que a ultrapassar. Como é que nós fazemos isso? Andamos muitas vezes ao calhau. Nós temos que olhar para a distribuição dos calhaus. Predominam estes, deve ser esta unidade, predominam aqueles, já deve ser outra unidade. As coisas tornam-se um pouco mais complicadas quando há coberturas cenozoicas, isso é muito difícil. É "andar ao calhau". Uma coisa que já desapareceu aqui no LNEG, que eram os chamados auxiliares de Geologia, os coletores, esses sim é que, com muita precisão, andavam sistematicamente no campo a ver e depois passavam um traço, mas sempre um traço que era incerto, porque não há afloramentos. Uma boa parte dos limites que há, principalmente na Zona de Ossa-Morena, foram marcados assim. Para baixo, mais a sul, já é diferente. Agora na zona de Ossa-Morena...

39. É desafiante.

Ouça, o que há que fazer é o seguinte: eu tenho aqui um afloramento e vejo aqui boas relações na rocha. Entre este afloramento e o próximo, que está a dois quilómetros, se não tiver mais nada, não tenho alternativa senão ligar estes dois afloramentos um ao outro. Seja verdade ou não. Mas também não há alternativa. No fundo a Geologia é assim. Não é mais do que estas ligações! Porque ai de nós se tivesse tudo exposto! Não está. (risos) Não havia solos e nem agricultura. Cá estamos a falar da tal facilidade de correlação, que é muito importante em Geologia, ver o que é que eu vejo aqui e o que é que eu vejo ali. Se isto é compatível, não tenho quase dúvidas nenhumas em ligar os dois afloramentos porque eles fazem parte, seguramente, da mesma entidade.

40. O problema é quando os afloramentos não têm nada com o que tinha visto anteriormente e sabe que alguma coisa mudou, mas não sabe onde.

Em questões do [ciclo] varisco, as mais essenciais são as relações geométricas entre as unidades. E, para isso, é preciso ter muitos critérios. Não só os critérios sedimentares, que foi uma coisa que aplicámos, eu e o José Brandão, na Faixa Piritosa Ibérica e que foi revolucionário. Foi usar o protólito, isto é, aquilo que a rocha era durante a sedimentação. E a partir daí, quando eu olho para um grauvaque ou um quartzito ou seja o que for, vou verificar a estruturação original da rocha.

"A cartografia é um exercício fantástico, de uma intelectualidade que a maior parte das pessoas nem faz ideia do que é. Porque nós estamos sistematicamente a colocar hipóteses (...) é um exercício permanente. Intelectualmente é de uma profundidade extraordinária"

41. Ver onde está o topo.

Exatamente. A partir desse momento, começo a ver as relações geométricas, que foi o que fizemos na Faixa Piritosa Ibérica, e começo a deduzir que os contactos, mesmo que não se vejam muito bem, eles existem. Por exemplo, no caso lá de baixo do flysch de Mértola, os critérios, essencialmente os sedimentares, indicam que a sucessão litológica está, sistematicamente, a meter-se por baixo do Complexo Vulcano-sedimentar. Mesmo que eu não veja o limite, não tenho alternativa senão colocar ali um cavalgamento, porque são as rochas mais antigas que estão por cima! E isso [interpretação] é sistemático, em todo o lado.

42. Como estudante, considera que foi um aluno médio, bom ou muito bom?

Não, muito bom não fui. Eu tenho 15 de média de licenciatura. Houve pessoas que tiveram notas mais altas. Não nos podemos esquecer de uma coisa, que eu estive envolvido na associação académica. Podia ter sido mais dedicado, mas eu não quis ser um aluno brilhante. Não, isso a mim não me diz grande coisa. Nessa altura não. Agora é preciso trabalhar para se conseguir emprego no final. Mas nessa altura, nós tínhamos quase a certeza que quando terminássemos tínhamos trabalho. Dava azo a ter outras atividades. Portanto, eu tive uma atividade paralela, ligada aos movimentos associativos, que me tomava muito tempo. Nessa altura, e num ambiente revolucionário, com greves de estudantes sistemáticas, havia muito que fazer. Inventámos o Dia do Estudante para se fazerem manifestações de rua, houve grandes manifestações lá em cima na Cidade Universitária, em que a estrela número um era o Jorge Sampaio, que era um grande orador. No fundo, tudo isto era também uma luta política, porque nós não gostávamos do governo. Havia poucos estudantes que gostavam do governo e, portanto, era uma luta política, que depois também tinha reivindicações. 

"Na véspera de fazer exame, tive a visita de um PIDE na minha casa, por causa dos movimentos associativos. Na véspera de fazer exame!"

43. Fazendo parte disso, o estudo ficou um bocadinho de lado...

Ficou. No primeiro ano que eu vim para aqui, vocês imaginam o que é vir das berças da minha aldeia, onde nunca tinha ouvido falar em movimentos associativos em política, nem nada disso?!?

44. Não? No Alentejo?

Não, não, não tenha essa ilusão. O alentejano é um povo muito conservador. Mas o problema nem era esse, é que dentro das próprias famílias dizia-se "Tu não te deves meter em política, nada de política". Era a mensagem do Estado Novo, nada de política, vocês têm que ser comandados, não têm que ter opinião. (risos) Ora, eu vim lá da minha aldeia, chego aqui a Lisboa em 1962 e encontro-me com uma movimentação extraordinária, eu digo "Eh pá! Eu vou gozar isto". (risos) Fiz uma cadeira no primeiro ano, uma cadeirinha! E depois mantive-me sempre muito envolvido. Foi muito importante. Foi aí que se criou uma noção dos princípios da democracia, porque nós não sabíamos o que era democracia. Eu vim aprender o que eram as discussões democráticas nas reuniões das associações. Esse envolvimento foi fundamental. Portanto, eu andei assim, ia fazendo umas cadeiras e tal, até que chegou o último ano em que tinha para fazer a cadeira de Geologia Geral, que era como se fosse a cadeira de topo do curso. Muito diferente do que é agora, porque eram grandes cadeirões que abarcavam quase tudo. Em Geologia geral davamos foto-Geologia, um pouco de sedimentologia, um pouco de tudo, estava tudo lá metido. Era o ano inteiro. Na véspera de fazer exame, tive a visita de um PIDE na minha casa, por causa dos movimentos associativos. Na véspera de fazer exame! Agora imaginem, falta-me uma cadeira, eu tenho de fazer exame amanhã, chega-me um tipo ao meu quarto a revolver tudo, a levantar tudo que havia, a pôr tudo de qualquer maneira. E eu a perguntar "Mas o que é que vocês querem?" e eles não me diziam nada. E eu pensei "Vou ser preso". Foram-se embora e permitiram-me fazer o exame. Eu fiz o exame, mas num estado absolutamente desesperado, porque "Se eu não faço esta cadeira agora, eu estou tramado. Se for preso, isto nunca mais!" Lá fui fazer o exame. Não me correu lá grande coisa, não...

45. Mas foi o suficiente para passar?

Foi o suficiente para passar, mas como eu era relativamente conhecido por causa do que fazia na propaganda da associação académica, os professores também me conheciam. E o Carlos Teixeira, que era o grande senhor da Geologia aqui em Lisboa, encontrou-me no corredor da faculdade passados aí uns seis dias e disse "Ouve lá, Tomás, quero falar contigo! Estive a ver o teu exame e aquilo não está bem. O que é que se passou?". E eu estive-lhe a contar a história. Eu, de facto, estava num estado desesperado e o exame não me correu bem. Talvez tenha dado para 10. E ele disse-me "Está bem, deixa estar. A gente faz uma prova oral". Havia outra pessoa, o professor Fernando Real, muito conhecido, e fizeram-me uma prova oral. O Carlos Teixeira conhecia o país integralmente e disse "Tu és de Beja, quando chegas a Beringel, vês ali umas barreiras brancas, o que é que é isso? Tu sabes o que é que é aquilo?". Era assim. (sorriso) E eu, que já estava mais ou menos..., (gesto de puxar pálpebra inferior) respondi, "Aquilo são os gabros alterados, não é? E fica um solo esbranquiçado pela transformação dos feldspatos e depois dá aquilo". E, portanto, eu lá lhe respondi bem, veja lá! (risos) Talvez aí tenha sido a criação desta amizade e ele até me ter escolhido para trabalhar lá na tal empresa. Depois eu passei e ele acabou por se oferecer como minha testemunha no julgamento do tribunal. E foi! E sabem quem foi a segunda testemunha? Um senhor famoso também, da cristalografia, [Carlos] Tôrre de Assunção [FCUL]! Também se ofereceu para ser minha testemunha lá no tribunal. Não fomos todos julgados em tribunal, não. Quem tinha dinheiro, metia advogados, quem não tinha dinheiro, não metia advogados nenhuns. Fiz a minha defesa, escrevi aquilo que tinha a fazer, dois professores ofereceram-se para ser minhas testemunhas. (risos) Melhor que isto não havia.

46. E qual é que foi a sua disciplina preferida durante o curso, lembra-se?

Eu penso que foi a última, quando começámos a ver a Geologia de Portugal. As outras era tudo muito específico. E também tivemos um azar... Eu tenho que reconhecer que tenho alguma dificuldade com a petrografia. Quem era o professor? Era o Tôrre de Assunção e o [Carlos Alberto] Mates Alves dava as práticas da petrografia. Só que ocorreu um incêndio no departamento e quase que não tivemos aulas de petrografia, porque, entretanto, os microscópios arderam. E a nossa preparação, pelo menos a minha, em petrografia, foi sempre muito, muito débil. E, se calhar, ainda tenho talvez um problema herdado daí! (risos) Porque, de facto, não gosto muito de petrografia. Mas quando começou a Geologia de Portugal foi incrível. E foi a última. Era a última cadeira. As outras iam-se fazendo.

47. E era o Carlos Teixeira que dava essa cadeira ou era um conjunto de professores que davam a última cadeira?

Não, não era, era só um professor, o Fernando Real, e o Carlos Teixeira depois dava umas palestras sobre alguns temas. O Fernando Real era um homem de campo e levava-nos aqui para a linha, Cascais, Estoril, Guincho, Sintra.

48. Eu pensei que nessa altura vocês andassem pelo país todo...

Não, não!

49. Porque só ver Mesozoico e um bocadinho de Cenozoico, durante a licenciatura, foi a nossa realidade.

Lamentavelmente. Porque mais recentemente, na FCUL, acabaram com uma cadeira que se chamava Cartografia Geológica. E era absolutamente essencial! E não ter uma cadeira de Cartografia Geológica [naqueles moldes] foi um erro crasso. É essencial, porque não consigo entender um geólogo que não saiba olhar para uma carta e entendê-la minimamente. Isso não é aceitável. 

50. E nas disciplinas de campo são sempre os mesmos locais, perto de Lisboa.

Pois, porque há dificuldades de mobilização, depois não há viaturas... Eu estudei em Inglaterra, estive lá um ano, na Universidade de Liverpool, e tive a oportunidade de ver o que é que eles fazem. Nisso os ingleses são pragmáticos. É assim: quando entram no primeiro ano, os alunos são deixados no campo com uma carta topográfica. Com uma carta topográfica! Para saberem a orientação e andar no campo. Depois eles fazem lá uns esquemas e têm de estar, penso, que 15 dias. É o primeiro embate. Porque quem sai das cidades sabe lá ler uma carta topográfica. Portanto, têm de andar no campo e saber orientar-se, com umas bússolas e tal. E isso era obrigatório. E depois, a cartografia geológica fazia-se com os alunos a irem para o campo, durante uma ou duas sessões, e a fazerem uma cartografia de uma determinada área e depois discutia-se.

51. Ainda fazem isso. E agora é no segundo ano, uns 12 ou 15 dias. E no último ano fazem sozinhos, são largados sozinhos.

Já agora... Eu disse que tenho muitas histórias! (risos) Vou-vos dar uma história que é interessante. Sabem que Portugal é um país muitíssimo popular para treino de cartografia geológica dos ingleses? Muito popular! É um país muito barato e, além disso, o álcool é à discrição. Falo com experiência! (risos) Sabem qual é a zona mais visitada para fazer trabalho de cartografia geológica das universidades? É a Zona Sul Portuguesa, o chamado setor sudoeste, Carrapateira.

52. Isso é dos melhores sítios para aprender cartografia. E o pessoal de Huelva também vai para lá fazer cartografia.

Nós temos um trabalho publicado numa reunião internacional, um livro-guia, com as explicações sobre essa zona. Dentro da minha página do ResearchGate, é a publicação mais procurada! Já lá vão 15 ou 20 mil consultas desse livro! E eu pergunto ao Paulo Fernandes [UAlg], "Epá, mas como é que é possível? Um livro-guia de uma excursão!". É! É que os alunos vão para lá e como têm lá a papa toda feita... (risos) Depois aquilo no Algarve é fantástico, um clima fantástico, ficam por ali o dia inteiro.

53. No Reino Unido eles têm de fazer um mês seguido numa área e apresentar a cartografia, porque a sociedade geológica inglesa não dá o título de geólogo se o aluno não tiver feito 30 dias de campo por ano na Licenciatura.

Exatamente! Quando estive em Liverpool acompanhei várias excursões com alunos. E digo-lhe uma coisa, o comportamento dos alunos ingleses em relação aos alunos portugueses, é uma diferença quase abissal.

"O professor apresenta a situação e os alunos massacram o professor com perguntas. Mas é massacre! Toda e qualquer dúvida! Não têm nenhuma objeção mental em fazerem essas perguntas aos professores"

54. Em que sentido?

Vamos aos afloramentos, com um professor. O professor apresenta a situação e os alunos massacram o professor com perguntas. Mas é massacre! Toda e qualquer dúvida! Não têm nenhuma objeção mental em fazerem essas perguntas aos professores. Agora vocês pensem nas nossas excursões e quais foram os alunos que fizeram perguntas aos professores durante a visita? Muito poucos. E isso é absolutamente significativo. Eles já estão a ser preparados para ter um sentido crítico das coisas e ficarem desinibidos. Para mim aquilo foi uma coisa sensacional! Mas eram todos, não era este ou aquele, eram todos! Faziam perguntas, algumas disparatadas, não interessa! Eu tive uns alunos de Erasmus na Universidade do Porto e houve uma aluna sueca que, logicamente, fazia um esforço tremendo, porque naquela altura as aulas eram dadas em português. Era tudo em português. E um dos objetivos do Erasmus era também aprender um pouco da língua para onde se ia. Portanto ela fazia um esforço tremendo para entender o português. Eu nunca dei apontamentos, sempre artigos. A chamada sebenta não é comigo. Fiquei com horror à sebenta, no meu tempo, porque era a "ciência oficial", não era uma ciência crítica. Enquanto professor, só dava trabalhos e sempre em língua estrangeira, francês, inglês ou espanhol. Para começarem a treinar-se a ler a linguagem científica, porque é a linguagem universal. Sempre fiz isso. E no final, eu perguntei-lhe "Então, fale-me lá da sua experiência aqui no Porto, gostou de estar cá?" Eu dava a cadeira de estratigrafia e bacias sedimentares. E ela virou-se para mim e diz assim, "Muito difícil, é uma coisa muitíssimo difícil", "Mas difícil porquê? Por causa da língua?", "Não, não é por causa da língua, é a maneira como se ensina aqui em Portugal. Nós na Suécia aprendemos fundamentalmente à base de trabalhos práticos. Qualquer assunto, há uma prática relacionada com isso. Aqui em Portugal não, é tudo teoria. Eu vi-me perfeitamente aflita porque é só teoria, teoria, mas depois a prática é uma coisa pequenina. E a ciência na Suécia é dada logo em cima de casos práticos, muitos casos práticos". Para mim foi uma experiência interessante, porque é mesmo assim, não é? Nós muitas vezes não damos conta, é tudo uma terrível tradição... a do Professor Catedrático, da Cátedra, de cima para baixo. E isso, vocês os jovens têm de combater isso! Proximidade com os alunos, abrir as conversas com os alunos, isso é importante. E não criar essa distância, como foi no meu tempo, porque é inibidor.

"(...) é tudo uma terrível tradição... a do Professor Catedrático, da Cátedra, de cima para baixo. E isso, vocês os jovens têm de combater isso! Proximidade com os alunos"

55. Da sua turma, de quem entrou consigo no curso, de mais um ano à frente ou atrás, há assim mais algum geólogo que tenha estado no ativo?

Ah, sim, há vários. Vou-lhe dar dois. Um que foi um geólogo importante, paleontólogo, que depois começou a trabalhar em carbonatos, José Esteves de Matos. Foi o principal representante da empresa PARTEX, da Gulbenkian, no Médio Oriente. Ele passava a vida sempre a viajar e acabou por depois fazer o doutoramento em Edimburgo. Entrou comigo e até me ajudou, nas minhas lutas, a passar uns apontamentozinhos para eu estudar! (risos) Há outro, e esse é meu amigo também, o André Lopes da Silva, foi geólogo dos petróleos, trabalhou aqui na GALP e até foi da administração da GALP.

56. Teve alguma colega mulher?

Sim, sim, então, a Maria Luísa Ribeiro. Colega de curso! Do primeiro ao último ano! Foi minha colega e dava-me bastante bem com ela. Dava e dou. E viemos depois a trabalhar juntos.

57. Qual é a sua referência na Geologia?

A pessoa que talvez mais me influenciou, do ponto de vista meramente teórico, mas não sei se vocês conhecem, foi o Roger G. Walker. Tem um livro chamado Facies. É da Universidade de McMaster, do Canadá. É um livro muito importante, que eu dava nas aulas, com a descrição dos vários ambientes sedimentares e como é que se faz a interpretação dos vários ambientes sedimentares, desde os mais superficiais aos mais profundos, aos carbonatos, evaporitos e tal. E eu usei bastante esse livro e acho que é um livro muito didático. Eu não o conheci pessoalmente, mas tenho admiração pela maneira como ele escreveu o texto. Tive outro, um tipo famoso, chama-se Emiliano Mutti, não sei se vocês conhecem. É o homem dos turbiditos, que estudou a sedimentação profunda na cadeia dos Apeninos, em Itália. Como eu tive que trabalhar no flysch [do Baixo Alentejo], turbiditos, tive que ler muita coisa! (risos) Olhe, aí está outra coisa de que eu posso, talvez, orgulhar-me, ter conseguido pôr algo de estratigrafia numa sequência absolutamente extraordinária, que é só xistos e grauvaques, xistos e grauvaques! (risos)

58. Pode-se dizer que a cartografia, ou estar no campo, era a atividade que mais prazer lhe deu, durante a sua carreira?

Sim, sem qualquer dúvida! Sem qualquer dúvida.

59. E o que menos gozo lhe dava, durante estes anos de serviço?

Eu tive algumas responsabilidades administrativas, fui diretor de Departamento, fui Presidente do Conselho Científico aqui do LNEG, na altura do IGM [Instituto Geológico e Mineiro]. A mim, o que me desagrada profundamente é a atividade burocrática inerente ao desempenho dessas funções. Eu aceitei desempenhar essas funções, mas não o fiz com prazer. Toda a burocracia à volta disso, acho que é um bocado penoso. Para quem está em cargos de direção, há vários equilíbrios a estabelecer. A gestão pessoal é muito importante, não é por acaso que há cursos de gestão de pessoal, porque é preciso saber gerir. E nem toda a gente, nem todos os grandes cientistas têm essa capacidade, porque a cabeça anda noutras coisas, não é? Portanto, essas atividades são consideradas atividades menores. É raro encontrar um grande cientista que seja um bom gestor.

60. Mas depois colocam os cientistas nesses papeis de gestão, não é? Tal como nem todos os investigadores são bons professores. Mas também têm de o aprender.

Exatamente! É uma grande verdade. Nem todos os grandes investigadores são bons professores. Exatamente.

"Há uma interpretação diferente de muitas unidades de um lado e outro da fronteira. (...) Numa província metalogénica da importância da Faixa Piritosa, problemas destes têm que estar resolvidos. Ao contrário do que se possa pensar, há muito trabalho para fazer na Faixa Piritosa, muito trabalho!"

61. Falou nesse livro que para si é muito especial, mas é essa a sua publicação favorita, ou na realidade a sua publicação favorita é uma carta geológica?

Não! São as cartas geológicas, é evidente! (risos) A Carta Geológica de Portugal, Mapa Geológico de Portugal, o mapa 1:500 000 que anda aí a circular. Fui coordenador do Paleozoico desse mapa com o Eurico Pereira [LNEG], é a minha publicação favorita. Porquê? Vou explicar. Até 1990, todos as cartas geológicas que eram publicadas no país eram vistas numa perspetiva mais cronostratigráfica. O que era preciso era saber se era Devónico, se era Sinemuriano e depois tinha uma descriçãozinha. E o que isto quer dizer é que a estratigrafia, a litoestratigrafia, não era vista com modernidade. O que é que fizemos no Paleozoico? Introduzir a litoestratigrafia na carta geológica. E esta carta geológica representa uma mudança muito significativa em relação à cartografia, mesmo a essas escalas. De tal modo que, dessa carta também derivou a carta de 1:1 000 000. Porque a carta de 1:1 000 000 não é mais do que a adaptação dessa carta [1:500 000] para uma outra escala. E interessantíssimo é que essa metodologia que eu terei dinamizado, depois passou a ser corrente. Hoje em dia só se fala em unidades, não há outra coisa. Na Zona de Ossa Morena, a carta de 1:1 000 000, e agora, na muito recentemente publicada Folha 6, do 1:200 000, a mesma metodologia está lá, a mesma coisa. Lá está o meu nome e eu já reformado há muito tempo! (risos) E é uma coisa que me dá um gozo extraordinário.

62. Sente que influenciou ou conseguiu mudar qualquer coisa, na forma como se fazia a cartografia.

Exatamente. Isso resulta de um trabalho que eu publiquei, com o José Piçarra e com o Vítor Oliveira, um geólogo famoso do Serviço de Fomento Mineiro antigo, um trabalho que se chama "Traços gerais da evoluçao tectono-estratigráfica da Zona de Ossa-Morena", não sei se vocês conhecem. Esse trabalho foi a base para tudo o que veio agora a sair. Mantém-se o estilo, agora mais enriquecido com outros dados, por exemplo, o [Martim] Chichorro e outros põe dados de carácter estrutural, muita geoquímica, muitas datações, granitoides, agora os granitoides estão todos estruturados, coisa que na altura nós não tínhamos. Mas a ossatura, o esqueleto, é o mesmo. Portanto compreendem porque é que eu tenho orgulho nessa carta, não? Depois dessa, talvez seja a carta de Mértola [Folha 46-D; 1:50 000]. Foi uma revolução no contexto da interpretação da Faixa Piritosa. Porque nós passámos a fazer uma interpretação estrutural e tectono-estratigráfica muito diferente daquilo que se fazia. Aquilo antes era tudo anticlinais e sinclinais e nós introduzimos a tectónica transpressiva, com carreamentos, coisa que não existia! E isso depois foi escrito e passou para a cartografia do 1:200 000. Portanto, hoje a síntese que há da Faixa Piritosa ainda é aquela que está nos mapas, na velha Folha 7 e 8 [1:200 000]. É caso para dizer que eu fui para Inglaterra para estudar as pistas, mas depois mudei para a Geologia. (risos) Mas ainda tenho um gostinho pelas pistas.

63. As voltas que a vida dá! Qual é que é o momento que considera mais marcante na sua carreia profissional?

Eu fiz uma carreira académica em paralelo com uma carreira como geólogo de uma instituição. Direi que aquilo que, eventualmente, marcou a minha vida - quase que não tenho dúvidas - foi quando fui convidado para lecionar na Universidade de Luanda. Porque aí eu não tinha nenhuma ideia de fazer uma carreira científica, ligada à investigação, mas o ligar-me à universidade despertou em mim esse gosto pela investigação mais especulativa. E depois daí fiz o doutoramento, a agregação e essas coisas todas, mas talvez tenha sido esse ponto o mais essencial que me fez ter essas duas carreiras paralelas.

64. Deu para continuar a fazer cartografia, que é o que mais gosta, associada a isso.

Ao mesmo tempo fazer investigação associada a isso. Porque a função dos Serviços Geológicos é dar a conhecer a estrutura do país através da cartografia geológica. Eu, como geólogo, tenho que responder a isso. Mas aquilo que eu faço no campo tem que ser complementado com outra informação e essa é a outra componente, a da investigação. Eu tinha que ir mais além e comecei a caminhar para a investigação. Mas há um outro aspeto também muito marcante da minha vida, que foi quando fui professor convidado na Universidade do Porto. Fui convidado como Professor Catedrático na Universidade do Porto, e foram 13 anos em que eu estive lá a dar aulas, de um prazer extraordinário. (emocionado) Aquelas pessoas trataram-me de uma forma inimaginável. Fizeram-me uma despedida, uma homenagem, e os alunos fizeram-me um boneco [desenho]. Esse boneco resulta de quê? Costumam dizer que por onde passo, deixo um rasto. No Porto também deixei uma pegada. Qual foi? A pegada foi levar os alunos ao campo e fazer, sistematicamente, e em todas as disciplinas, pelo menos uma semana de trabalho de campo com trajetos em todo o país, desde Trás-os-Montes até à Carrapateira, parando em todo o lado. Depois, talvez por aquilo que eu aprendi em Inglaterra, eu chegava aos afloramentos, punha os alunos em frente aos afloramentos, punha-me a dizer o que estávamos a ver em termos gerais e depois fazia perguntas aos alunos. Como é que justifica aquilo ali, para pôr os alunos a trabalhar. Sem isso, ficava tudo passivo. Eles ficavam um bocadinho chateados, mas agora, como profissionais - eu tenho relação com muitos deles - dizem, "Ah!, as suas aulas abriram-nos o mundo da Geologia". Muitas vezes tinham dificuldade em explicar, mas a minha intenção era só pôr os alunos a raciocinar. Logicamente, pessoas sem experiência nenhuma ficam um bocado aflitas. Depois então, eu ia lá dar a explicação científica e explicar porque é que era daquela maneira. Mas eles tinham-se esforçado para fazer alguma coisa.

65. Às vezes as coisas não nos correm tão bem. Tem algum momento que considera um falhanço ou um momento embaraçoso?

A maior frustração que eu tive foi quando fui trabalhar lá para a tal empresa canadiana. Mandaram-me fazer cartografia geológica e eu fui incapaz de o fazer. Está a ver o Anticlinal de Estremoz? É melhor dizer o antiforma de Estremoz, há uma grande discussão sobre isso. É um antiforma, são duas coisas diferentes. Nessa empresa, eu tinha que apanhar as amostras e também aprendi a fazer uma coisa, que talvez tenha sido a primeira vez feita em Portugal, que foi prospeção geoquímica de solos. Tivemos de montar um laboratório, com o apoio do John W. Lydon, do Geological Survey of Canada, que é um professor canadiano que tem muitos trabalhos sobre depósitos minerais. Dentro desse projeto, eu tinha de apanhar as amostras, mas tinha que fazer também a cartografia. Isto foi à saída da universidade, a única experiência anterior tinha sido o estágio. Mandam-me fazer cartografia geológica e eu vi-me aflito para a fazer. Porque lá está, eu não sabia distinguir a estratificação da xistosidade. E a páginas tantas, ia atrás dos afloramentos e estes são fundamentalmente marcados pela xistosidade e não pela estratificação. Eu pensava que estava a marcar a estratificação e andava a marcar a xistosidade. E isso não era uma carta geológica, era uma carta da xistosidade. (risos) Senti uma frustração enorme por não ter conseguido fazer isso.

66. Quando é que se apercebeu do erro?

Eu apercebi-me pelo seguinte. Eu trabalhei nessa empresa 10 meses e depois tive que ir para a tropa. Nessa altura era assim, e depois tive que ir para a guerra, mas enfim. Como é que eu me apercebi disto? Estava na pedreira de Pardais, onde se dá o fecho da estrutura. Não eram os calcários que nos interessavam, nós andávamos à procura de xistos e filões, havia um filãozinho mineralizado. E do que é que eu me apercebi e daí a minha frustração? Os xistos envolventes, que hoje sabemos que são do Silúrico e do Devónico, eu ia a seguir os afloramentos, mas não os via a dar a volta ao anticlinal. Mas como é que eu vou atrás disto? Já estou longe do anticlinal e não vejo a estrutura a dar a volta. E digo "Eh pá, há aqui qualquer coisa". É uma frustração lixada, eu não sou capaz de ler isto! Voltei para trás e apercebi-me que andava a cartografar a xistosidade. Mas não tive tempo para voltar para trás para fazer a cartografia e esse trabalho ficou incompleto. É uma frustração enorme. Depois, a parte geoquímica correu bastante bem. Aquilo a que se chama na geoquímica a pesquisa mineira a frio, não é preciso aquecer nada, só utilizar uma série de reagentes para se identificar cobre, chumbo e zinco. Também aprendi a desenhar as anomalias, a determinar o background e depois as anomalias.

67. O Antiforma de Estremoz! Aí está Estremoz a frustrar o nosso grande geólogo.

Há uma polémica extraordinária em que eu estou envolvido com o José Piçarra e outros, a propósito de Estremoz, e em que a estratigrafia tem um papel essencial. A estratigrafia é a mãe das ciências geológicas, tudo anda à sua volta. Até se faz estratigrafia de granitoides e de rochas vulcânicas. E há ali um problema. A Graciela Sarmiento [UCM, Madrid] identificou lá uns conodontes e, portanto, esses calcários não são compatíveis com o Câmbrico porque os conodontes dão Silúrico superior a Devónico. Mas o problema não é ter dado num, são vários os sítios! E depois o Piçarra começou a encontrar crinoides nos calcários! E os crinoides, também com a ajuda de um especialista nosso amigo, o [Jean] Le Menn, da Universidade de Brest [França], não podem ter uma idade anterior ao Ordovícico. E os crinoides estão lá metidos na rocha. Isto tem grandes implicações, mesmo na Folha 6 da 1:200 000, na própria representação da coluna estratigráfica. E eu tive grandes discussões com o Chichorro por causa disso. Acho que fazem bem, mas olham muito para os dados radiométricos, urânio-chumbo, e esses é que são o essencial, o resto não interessa, pelo que estão ali algumas discussões. 

68. Mas isso é que mantém a Geologia acesa.

Claro, desde que a discussão se mantenha num nível educado. Agora também há aí uma moda, os chamados zircões detríticos. Temos polémicas com colegas da Universidade de Granada [Espanha], eu e a Zélia, por causa da comparação dos dados dos zircões detríticos e os palinomorfos. É muito interessante. Tudo está remobilizado, a gente sabe, mas os zircões também estão remobilizados. E muitos deles vêm de terrenos pré-câmbricos ou até do Arcaico. Os critérios para a remobilização também se aplicam para os palinomorfos, miosporos fundamentalmente. Mas enquanto que, nos zircões detríticos, determinam idades com três ou quatro exemplares, a Zélia estuda centenas de exemplares, é uma população enorme e ela depois consegue, através de várias técnicas, com a identificação de várias espécies, lá chegar à idade. Os nossos colegas de Granada só querem saber dos [zircões] detríticos e nós queremos insistir nos palinomorfos. E isto tem relevância para a interpretação do significado do Terreno do Pulo do Lobo: se é um terreno ofiolítico ou não. Mas isso é ciência e isso é giro. Atenção, que eu sou amigo da maior parte dos de Granada. Muitos deles são meus contemporâneos e nós até trabalhámos juntos em muitas coisas. Mas não quer dizer que não discordemos, não é?

69. Além da Geologia, ocupa o seu tempo com algum hobby?

(simulando tocar guitarra) É o meu maior hobby. Eu também gosto de desporto, mas quando preciso de libertar o stress, eu toco umas cançõezinhas.

70. Qual é a viola que toca?

A de seis cordas. E como sou admirador da música do Zeca Afonso, gosto muito. Agora quando estou no Algarve, tenho lá uma série de CDs e há uns discos sobre a guitarra portuguesa, que é um instrumento a que não se dá muita importância, chama-se Guitarradas, que foi um espetáculo feito na Aula Magna [Lisboa] com os maiores guitarristas. E eu delicio-me. (sorrindo) Ponho o disco e depois com a minha viola vou tentando acompanhar. Tudo de ouvido, porque eu não sei ler pautas. E também pertenci a coros.

71. Alentejanos?

Sim, alentejanos! Eu vou contar outra história. (sorriso) Eu disse que tinha muitas histórias! Eu sei muitas modas alentejanas. De modo que, quando eu vim para a Faculdade de Ciências, estava-se na fase de revolução política e, com mais alguns alentejanos de Beja, criámos um grupo coral da Faculdade de Ciências! Eu era o ensaiador, porque tenho bom ouvido musical, e começámos a fazer exibições pela Universidade! (risos)

72. Por isso é que o primeiro ano ficou para trás... (risos)

(sorrindo) Exatamente. E depois, no meio disso, nós tínhamos uma música que se chamava Baleizão. "Oh baleizão, baleizão, oh terra baleizoeira", que na altura era por causa do partido comunista. Onde quer que nós íamos, eles "Então, Baleizão?!?". E fiz parte de um grupo coral em Beja de música clássica.

73. Quando é que podemos organizar uma jam session do Tomás Oliveira e outros geólogos-músicos num congresso?

Eu diria que uma frustração minha é não ter entrado num grupo musical. Adoraria ter feito parte de um grupo musical, mas nunca se proporcionou.

74. Mas o concerto ainda pode ser. Isso organiza-se num congresso.

Eu trabalho muito com professores, e no âmbito de um curso de professores, com a Ana Jesus [FCUL], fomos ali ver os ofiólitos. E às tantas estávamos a falar de música e ela disse, "Qualquer dia temos que nos juntar". Eu conheço a Ana Jesus nos tempos que ela "andava ao calhau" em Odivelas, em Beja. É uma mulher de uma força extraordinária, fiquei admirador dela. Um dia estava eu com um marroquino e aparece-me a Ana Jesus, eram aí já umas 10h30 ou 11 da noite, "Vamos falar aqui um bocadinho, mas eu ainda tenho que ir para Lisboa", "Mas você vai-se embora às 11 da noite?". Se fosse qualquer outra pessoa não se metia assim num jipe por aí adiante. Passei a ser admirador dela. O que ela fez com o António Mateus foi um belíssimo trabalho. Eu adorei aquele trabalho. De tal maneira que pusemo-lo na notícia explicativa de Azinheira de Barros [Folha 42-B; 1:50 000]. É um esforço muito significativo fazer estratigrafia numa sequência gabroica. É a especialidade dela, mas olhe que não é para qualquer pessoa fazer uma coisa daquelas! É um pouco como fazer a cartografia do flysch, não é? (risos) Andar ali, a separar vários...

75. Pois, separar gabros de gabros...

Exatamente! E não só, ela estabelece sequências. Depois, logicamente, foi usar a geoquímica para ver o seu significado. E eu acho que eles fizeram um trabalho extraordinário. E agora há outra pessoa, a Filipa Luz [Almina - Minas do Alentejo S.A.]. Estou a redigir a notícia explicativa da folha de Almodôvar [Folha 46-C, escala 1:50 000] e há outro trabalho muito interessante que eu pedi. Eu dou-me muito bem com o António Mateus. Aliás, sou admirador do António Mateus. A Filipa Luz tem um trabalho na notícia explicativa com o António Mateus sobre geoquímica dos sedimentos, que é uma coisa a que nós não ligámos grandemente [no passado], e foi chamada à atenção por um geólogo que conheci, um tipo famoso, australiano. Quando chegou aqui, a mostrar-lhe a Faixa Piritosa, o homem perguntava muito por geoquímica dos sedimentos. E dizia-lhe "Mas nós aqui só ligamos à geoquímica da rocha vulcânica, ou ácidas ou básicas, sedimentos nada!". O homem torcia-se. "Mas como é que vocês sabem o ambiente em que isso se está a depositar, então não têm noção nenhuma?". Epá, de facto isto é uma lacuna! E, felizmente, a Filipa fez o doutoramento sobre isso. E tem uma contribuição na notícia explicativa que, no fundo, é um resumo daquilo que ela fez. 


Intraclasto

Vinagrada - gaspacho tradicional do Alentejo


"Eu faço o gaspacho tradicional do Alentejo, que se chama vinagrada. A influência da modernidade do contacto com os espanhóis, é que levou a chamar-se gaspacho. No Baixo Alentejo, é feito com sopas de pão, com pepino, tomate, azeite, um bocadinho de alho, tudo com água fria, e depois é acompanhado ou com peixe frito ou com enchidos, antigamente com linguiça. Eu como disso frequentemente, com peixe frito, os carapauzinhos pequeninos. Eu prefiro o gaspacho tradicional feito assim. E digo-lhe uma coisa, do ponto de vista dietético é uma comida sensacional."



Geomanias

Rocha preferida? Arenito

Mineral preferido? Ouro nativo

Fóssil preferido? Amonoides goniatites

Unidade litostratigráfica preferida? Grupo Filítico [Filito-Quartzítico] da Faixa Piritosa. Porque agora cheguei à conclusão de que uma boa parte daquilo que nós considerámos como unidade, podem ser olistostromas.


Era, Período, Época ou Idade preferido? Devónico Superior ou Carbónico! É onde eu passo a vida! (risos)

Trabalho de campo ou de gabinete? Oh, toda a entrevista está a dizer o que é que é, não é? Campo, claro! (risos)

Martelo ou microscópio?  Martelo, sem dúvida!


Amostra de mão ou lâmina delgada? Amostra de mão! Sempre.

Pedra mole ou pedra dura? Pedra dura

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Metálicos. 

Lusitânica ou Lusitaniana? Eu digo Lusitânica. E dou uma razão para dizer Lusitânica, porque Lusitaniana é um anglicismo que não tem nenhuma razão de ser.


Teaser da Entrevista