Manuel Adónis

Fevereiro 2022


GEOLOGIA DE CAMPO

SÓCIO APG Nº O1

É natural de Alcains e atualmente dedica-se à sua loja de minerais e fósseis, a GEO 2000 em Lisboa. O seu primeiro contacto com a Geologia foi uma disciplina de mineralogia, no 2º ano da licenciatura de geografia, a qual o fez mudar de curso!

"...Era para mim único. Nós dizíamos na altura que o professor Carlos Teixeira era solteiro e tinha casado com a Geologia."

Foi ao engano para o curso de Geografia, mas felizmente as aulas de mineralogia no 2º ano resgataram-no. Manuel Adónis, sócio nº1 da APG e amante de minerais. E quanto mais raros, melhor. Foi rodeado por eles, na sua conhecida loja GEO 2000, em Lisboa, que nos contou décadas de dedicação à cartografia geológica. Nunca se esquece a primeira carta... mas nada como a experiência para nos fazer desfrutar das seguintes. Da Beira Baixa para o mundo, venham conhecer quem conheceu várias gerações da nossa Geologia. Talvez fevereiro seja demasiado pequeno, para abraçar uma tão grande história. 


Entrevista
Areeiro, Lisboa, julho de 2022


1) Nome, idade e local de nascimento.

Manuel Lopes Adónis, natural de Alcains. [Nasci a] 12 de fevereiro de 1940 [81 anos]. 

2) Se tivesse de resumir numa única frase o que faz profissionalmente, para leigos, o que diria?

Estudo os minerais constituintes das rochas, é a minha ocupação principal.

3) Em que ano e onde ingressou no curso de Geologia?

Em 1964, na Universidade de Lisboa, Faculdade de Ciências, a antiga, na Escola Politécnica.

4) O que o levou a seguir Geologia?

Foi um caso um pouco raro, talvez. Eu vim do liceu diretamente para o curso de Geografia, para a Faculdade de Letras. Depois, na Faculdade de Letras, tive uma cadeira de mineralogia. Essa cadeira era dada na Faculdade de Ciências pelo Doutor [Rodrigo] Bouto. Aí, tive o primeiro contacto com problemas da mineralogia e da Geologia. E então, cheguei à conclusão de que eu gostava era daquilo, não era de geografia. Eu não gostava de geografia, gostava era de Geologia. E nessa altura, eu já estava no segundo ano de geografia, mudei para Geologia. Mas como estava também a cumprir o serviço militar, foi fácil transitar de um curso para o outro. E foi assim que eu decidi.

"...quando encontrei a mineralogia, digo assim: É aqui, é aqui, não é ali"

5) Foi esse efetivamente o primeiro contacto que teve com a Geologia?

Foi exatamente [esse] o primeiro contacto [durante o curso de Geografia]. No liceu, a Geologia passou-me um pouco ao lado. Aliás, eu tive um problema no liceu: o professor de ciências era um indivíduo pró-Salazar. Houve aquele problema com o Humberto Delgado e houve uma grande manifestação no Liceu de Castelo Branco, onde eu estava a fazer o curso liceal. Nessa altura, o professor de ciências naturais resolveu arrasar praticamente os alunos todos. Eu tive de sair do Liceu de Castelo Branco para o Liceu de Portalegre, onde terminei depois o curso do ensino secundário. Houve aí, portanto, um pouco o apagar da Geologia, ou seja, não tive contacto e nunca tive conhecimentos do que era a Geologia. Eu fui mais para a geografia porque senti que alguma coisa me orientava para ali.

6) Além da geografia física, o que é que o levou a tomar o passo de seguir geografia? Interessavam-lhe as questões dos diferentes povos?

Eu fui para a geografia porque sempre tive mais aptidão, os problemas da geografia sempre me entraram mais facilmente. Eu interessava-me pelos diferentes povos e pelos diferentes lugares da Terra. Já havia algo em mim que estava relacionado com a Terra em si. Já era muito bom nessa parte da geografia. Inclusivamente, fui depois para a Faculdade de Letras onde tive um professor famoso, o Orlando Ribeiro! Embora tenha gostado do curso de geografia, quando encontrei a mineralogia digo assim: "É aqui, é aqui, não é ali". (risos)

"...foi um geólogo de campo que só via a Geologia à frente, não havia obstáculos. Foi uma pessoa que me ensinou a fazer a Geologia de campo"


7) Na sua família, quer em gerações anteriores ou agora mais recentemente, não há ninguém ligado à Geologia?

Anteriormente não, agora sim. Agora sim, porque a minha mulher também é de Geologia. Encontrei-a também lá na Geologia.

8) Já agora, pode dizer-nos o nome da sua mulher?

Maria Dulce. Ela é do primeiro curso da nova reforma, também aqui em Lisboa. Ela depois acompanhou-me em Moçambique, já na última fase. Ou seja, já trabalhou também em Geologia, mas depois não seguiu, foi para professora do ensino secundário.

9) Foi um aluno médio, bom, participativo?

Fui um aluno bom, mas calado. Eu não era daqueles que intervinha nas aulas. Era caladinho, gostava de escutar.

10) No tempo em que foi estudante, seguramente muitos professores, de uma forma ou outra, tiveram um impacto em si. Se pudesse escolher apenas um professor, quem seria?

O professor Carlos Teixeira, sem dúvida nenhuma! Era para mim o único. Nós dizíamos na altura que o professor Carlos Teixeira era solteiro e tinha casado com a Geologia.

11) Eu sou grande fã dos trabalhos do professor Carlos Teixeira e tenho sempre curiosidade de falar com pessoas que tenham sido alunas dele. Aquilo que chegou a muita gente atualmente é que ele tinha muito mau feitio...

Tinha, tinha um pouco de mau feitio. Mas era apenas para algumas pessoas. Para essas, ele tinha mau feitio, dizia trinta por uma linha. Mas para as pessoas que lhe caíam no goto, ele era outra pessoa. Era uma pessoa que ensinava, que gostava de falar com as pessoas, e era [esse] o meu caso. Eu depois de fazer o curso, trazia-lhe alguns problemas que me apareciam e ele brincava comigo, ficava louco com as coisas que eu lhe falava! Eu achei um conglomerado lá no Xisto-Grauváquico que ele não conhecia e ele ficou doido, (gesticulando) porque apareceu-lhe uma coisa nova. Tudo o que era Geologia, ele vibrava. Era uma pessoa que fazia as pessoas gostar da Geologia. Era uma pessoa diferente.

12) Tem algum geoídolo?

O meu ídolo é o [George] Jourde [Bureau de Recherches Géologiques et Minières, França], foi um geólogo de campo que só via a Geologia à frente, não havia obstáculos. Foi uma pessoa que me ensinou a fazer a Geologia de campo. Porque se for laboratório, já é outra coisa. Mas cartografia geológica, que era aquilo que ele fazia, ensinou-me a fazer. Quando eu terminei o curso, havia um estágio e eu fiz o estágio em Elvas. E aí era a tal Geologia antiga, de parar, apanhar uma amostra, analisar no laboratório, apanhar outra amostra, analisar de novo no laboratório. E isso não é fazer Geologia. [Essa] ensinou-me o Jourde. A Geologia [de campo] faz-se com um itinerário, um itinerário com princípio, meio e fim e perpendicular às formações geológicas, sempre com um destino.

"As cartas que eu fiz da bacia do Kwanza em Angola, recentemente, não foram publicadas. Pelo contrário, foram consideradas secretas. Porque em Angola é outra maneira de viver, as pessoas e as empresas e as instituições vivem no segredo"

13) Qual é a sua publicação favorita na área da Geociências?

Todas aquelas cartas de Moçambique que foram publicadas. Portanto, entre Quelimane e Montepuez, entre Nacala e Malawi, toda a zona central de Moçambique. Todas essas cartas [que] eu fiz, primeiro com a BRGM uma parte, depois com a Aquater, a outra parte. Toda essa zona eu cartografei e foi tudo publicado em Moçambique. Essas cartas foram publicadas. As cartas que eu fiz da bacia do Kwanza em Angola, recentemente, não foram publicadas. Pelo contrário, foram consideradas secretas. Porque em Angola é outra maneira de viver, as pessoas, as empresas e as instituições vivem no segredo, eles fazem para eles e guardam fechado a sete chaves. Portanto, o trabalho que eu fiz em Angola não foi publicado, existe na Sonangol e só a Sonangol o pode mostrar a quem quiser ou o pode vender. Aliás, eles fizeram aquele estudo com o intuito de o vender, às empresas interessadas.

14) E essas cartas que referiu, são todas à escala 1:200 000?

1:250 000. Quer dizer, nós fazíamos o trabalho básico na escala 1: 50 000, para depois ter um bom 1:250 000. [As de Moçambique] são cartas com grande nível geológico. São 250 000 muito completas, porque foram feitas a partir de 50 000. O 50 000 não foi publicado, mas está lá, está lá nos Serviços [Geológicos].

15) Quanto tempo levou para fazer essa cartografia?

A cartografia de Moçambique foram cinco anos e a de Angola foram dois anos.

16) Parece-nos um pouco óbvio, mas qual é a atividade da Geologia que lhe dá mais prazer?

É a cartografia geológica, embora hoje eu já tenha resolvido parar com a cartografia geológica. Portanto, a última foi em Angola em 2014. Em 2015, cheguei a Portugal e falei para Angola que era o último trabalho de cartografia geológica que fazia, que já não fazia mais. E já tinha, nessa altura, este meu trabalho que é um trabalho mais descansado, trabalho de mais pormenor, de um outro tipo que também dá um grande gozo geologicamente. Porque, além de eu vender tudo o que são minerais, ainda tenho um interesse especial por tudo o que são minerais muito raros. Especialmente minerais que tiveram nomes de portugueses, como por exemplo bendadaite, que é um mineral que foi descoberto no Brasil, mas a quem foi dado o nome de uma mina portuguesa, a mina da Bendada, junto da Guarda, em Portugal.

"Foi ele [Daniel Atencio] quem descobriu a atencioite, mas (...) quem lhe ofereceu a melhor atencioite que ele tem, fui eu"

Outro mineral com um nome português, e isto é coisa recente, coisa de há menos de 10 anos, foi a correianevesite, em homenagem ao professor Correia Neves. Foi um antigo professor [da Universidade] de Moçambique [já falecido], que foi viver para o Brasil e depois, por "dá cá aquela palha", ele descobriu um mineral, identificado como um mineral novo. Estes minerais [novos], eu tentei desenvolver. Quer dizer, estes minerais foram descobertos por pequenas amostras isoladas e eu depois cheguei a encontrar quantidades grandes desses minerais! Hoje, de alguns desses minerais raros, como correianevesite, como matioliite ou bendadaite, eu tenho mais de cinco quilos de cada e sou a única pessoa que os tem. Tenho um mineral chamado atencioite, e o professor que descobriu este mineral é o professor [Daniel] Atencio da Universidade de São Paulo. Foi ele quem descobriu a atencioite, mas quem tem atencioites sou eu, quem lhe ofereceu a melhor atencioite que ele tem, fui eu. (risos) Eu depois fui ao lugar onde ele tinha apanhado a atencioite, contratei garimpeiros locais, fiz escavações intensas, com dinamite às vezes, e descobri maiores quantidades e trouxe para Portugal.

"quando uma pessoa sabe ensinar, a pessoa que é ensinada fica de uma outra forma, quer dizer, vive uma outra vida! " 

17) Então viaja muito, à conta desta sua atividade mais recente, à caça de minerais...

Sim, muito. Viajo muito, especialmente ao Brasil, porque é o país em que se anda mais à vontade. Hoje a gente vai para Angola, não se pode trazer uma pedra. Eu quis trazer um bocado de calcite para analisar aqui, que era uma coisa especial, não consegui pois tiraram-ma na alfândega. Em Angola não se pode trazer nada para fora. Ou se estuda lá, que não há meios para isso, ou então tem depois que se entrar na burocracia, que é uma coisa louca. Todos os países que aprenderam a burocracia com Portugal, é melhor esquecer! A não ser o Brasil, que é um país em que a gente anda à vontade e traz à vontade. Eu no Brasil encho um bidon de 200 litros de pedras, trago para Portugal, pago os impostos lá e cá e ninguém me diz nada, está tudo legal. Em Moçambique já não é a mesma coisa, já tem que se dar gorjeta a este, gorjeta àquele, gorjeta a outro. Em Angola querem "gasosas" por tudo e por nada. 

18) Queremos agora saber, no âmbito desta vida tão atribulada e rica que teve, se alguma vez marcou umas férias para ir ver Geologia sem contar à família o motivo?

Não. Até porque a mulher também queria ir. (sorriso) Fiz muitas viagens para a "minha Geologia", portanto, relacionado com a mineralogia, mas foi sempre tudo programado, sempre através da nossa empresa, nunca assim nada de especial.  

19)  Qual a resposta mais hilariante que recebeu de familiares ou amigos quando à pergunta "que fazes da vida" respondeu "sou geólogo"? Especialmente quando trocou a geografia pela geologia, alguma resposta engraçada?

Quando troquei, não. Mas aconteceu muitas vezes, de facto, na vida, perguntarem-me: "O que é que tu fazes?" Eu sou geólogo. "O que é isso? Mas o que é a Geologia?" As pessoas em geral, muita gente, não sabe o que é a Geologia. Especialmente em Portugal, não tanto no Brasil, que em princípio está mais atrasado que Portugal [no desenvolvimento], mas, no entanto, mais em Portugal, as pessoas desconhecem completamente o que é ser geólogo. Felizmente hoje em dia já se olha para a Geologia de uma outra forma. Houve uma altura em que nós constituímos a Associação Portuguesa de Geólogos, aliás eu, com uma série de geólogos, na altura resolvemos constituir a Associação Portuguesa de Geólogos até ainda por influência do Carlos Teixeira! Porque o Carlos Teixeira revoltava-se muito contra certas obras feitas em Portugal, em locais negativos do ponto de vista geológico. Um deles foi esta autoestrada de Lisboa ao Porto, que foi feita numa zona que cortou uma parte em que as camadas inclinavam para dentro da autoestrada. Eles depois meteram cimento para tentar colmatar, mas isso é uma coisa que está sempre a jeito de escorregar. [um cliente entra na GEO 2000, interrompendo a história]

20) Nestes anos todos, qual foi o momento mais marcante na sua carreira? Pode ser positivo ou negativo.

O momento mais marcante foi logo aquele que eu lhe falei ao princípio, de fazer o primeiro trabalho de cartografia geológica e ter sido não aceite. Nessa altura, foi - imagine - estar um ano a trabalhar e depois chega-se ao fim e é dado como errado! (ar expressivo) Tinha que fazer [tudo de novo] no ano seguinte. Foi um choque muito grande! Mas depois foi compensado com uma reviravolta inimaginável. O ordenado foi duplicado e vinha outra pessoa ensinar como se deve fazer. Porque um dos problemas é ensinar as pessoas. Se as pessoas não são ensinadas, é muito mais difícil. Agora, quando uma pessoa sabe ensinar, a pessoa que é ensinada fica de uma outra forma, quer dizer, vive uma outra vida! (olhar sério) Foi um momento que marcou muito a minha vida.    


Geomanias

Rocha preferida? Charnockito

Mineral preferido? Quartzo 

Fóssil preferido? Trilobite

Unidade litostratigráfica preferida? Migmatito do estado da Bahia, Brasil. Uma rocha ornamental muito utilizada em Portugal, nomeadamente no chão da loja Geo 2000.

Era, Período, Época ou Idade preferida? Pré-Câmbrico

Trabalho de campo ou de gabinete? Campo

Martelo ou microscópio? Martelo

Amostra de mão ou lâmina delgada? Amostra de mão


Carta Geológica favorita? Elvas [37-A, 1:50 000]. Foi onde eu comecei.

Pedra mole ou pedra dura? Pedra dura

Recursos minerais metálicos ou não metálicos? Metálicos

Crosta ou crusta? Crosta, mas penso que é a mesma coisa. 


Teaser da entrevista